3 de mai. de 2010

Textos: Natureza/Cultura




ANTROPOFAGIA INDÍGENA

Por Dorothea Voegeli Passetti


A professora de antropologia Dorothea Voegeli Passetti (que participa do X Simpósio Nietzsche Deleuze: Natureza/ Cultura) afirma que a antropofagia indígena nada tem a ver com o caso de comer o outro por fome ou com a prática de extrema violência


Costuma-se falar em canibalismo quando um humano ingere a carne de outro em situações de extrema fome, em função da completa ausência de alimentos. Outra forma de canibalismo está relacionada a vontades impronunciáveis e incontroláveis de alguém que come o outro, muitas vezes associadas a práticas sexuais. Por fim, há o horror à simples idéia de canibalismo usada sob a forma de ameaça de violência extrema, manifestação de terror durante guerras, revoluções e outras formas de conflito, como nas rebeliões em prisões.
Entre os povos indígenas, a antropofagia não segue nenhuma destas motivações. Ela diz respeito a um conjunto de regras conhecidas e compartilhadas por todos, compondo um ritual e integrando uma cultura.
Alguns europeus que conviveram com povos indígenas da costa brasileira descreveram estas práticas. Destacam-se os escritos sobre os tupinambás, produzidos por cronistas e viajantes em meados do século XVI. Dentre os mais famosos está o de Hans Staden, um alemão que ao conhecer o Novo Mundo foi capturado por esses índios, quando era artilheiro no forte de Bertioga, no litoral norte paulista, depois de naufragar em Santa Catarina. Confundido com um português, com eles conviveu na condição de cativo, quando eram aliados dos franceses que aqui pretendiam fundar a França Antártica. Depois de se safar da antropofagia e regressar à Alemanha, descreveu esse episódio em Duas viagens ao Brasil - arrojadas aventuras no século XVI entre os antropófagos do Novo Mundo, livro fartamente ilustrado, publicado pela primeira vez em 1557, ano em que o francês católico André Thevet divulgou Singularidades da França Antártica, sobre o mesmo tema. Anos mais tarde, em 1578, o calvinista Jean de Lery lançou História de uma viagem feita à terra do Brasil e, em 1580, Michel de Montaigne descreveu os mesmos tupinambás no capítulo "Dos Canibais", em Ensaios, mesmo sem nunca ter pisado do lado de cá do Atlântico.
Após a captura, o inimigo é levado à aldeia onde é muito bem tratado, geralmente recebendo uma mulher por companhia. Segundo Staden, ele observa atividades cotidianas e às vezes participa das técnicas de caça, pesca e plantio; da construção de habitações, fabricação de utensílios, instrumentos e armas, elaboração de comida; da execução de canto e dança; do uso de adereços plumários e pintura corporal; da própria guerra, até a hora do ritual antropofágico. A festa é anunciada com antecedência: as mulheres preparam a bebida enquanto homens partem para convidar os parentes de outras localidades e demais grupos indígenas aliados. Bebe-se à vontade até a véspera da cerimônia. No dia seguinte, o prisioneiro é pintado segundo um padrão especial para a ocasião, e amarrado pela cintura por uma grossa corda esticada por um guerreiro em cada ponta, para imobilizá-lo.
No centro do terreiro, entre cantos e danças, o cativo ouve ainda provocações verbais às quais pode responder com pedradas e atirando outros objetos contra os manifestantes. Por último, chega seu executor, o seu dono, também especialmente paramentado, que lhe dirá, conforme relatou Staden: "Aqui estou eu, quero matar-te, pois tua gente também matou e comeu muitos dos meus amigos". Cabe ao prisioneiro responder simplesmente: "Quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão vingar-me". Após este curto diálogo cerimonial, o executor atinge a cabeça do prisioneiro com o pesado ibirapema, de madeira também especialmente ornado com plumas e pintado, que numa única pancada deve derrubar o cativo ao chão.
Morto, seu corpo será cortado em pedaços, esfolado e assado num moquém, e todos comerão um pedaço. A gordura que escorre desse preparo é especialmente apreciada pelas velhas, e um mingau das vísceras é consumido por mulheres e crianças, que também recebem a carne da cabeça. Quem nada come é o executor, que entra em reclusão para se purificar, ingerindo apenas um certo purê vegetal. Receberá o nome do prisioneiro executado que acrescentará aos que já possui e aguardará, mais tarde, a vingança de seus parentes, num ritual semelhante.
A antropofagia promovia uma forma específica de sociabilidade pela ingestão do corpo do inimigo, ou de seu nome e, com ele, sua honra, sua coragem e força. Morrer assim era uma forma superior diante do fato de ser comido pelos vermes que devoram a carne humana.
Há muitas outras formas de antropofagia indígena. Mas, seja qual for, ela é sempre ritual, que não confunde a carne humana com a caça. Não se mata humanos apenas para comê-los, mesmo que sua carne seja uma delícia incomparável.


Dorothea Voegeli Passetti é professora de Antropologia na PUC-SP, autora de LÉVI-STRAUSS, ANTROPOLOGIA E ARTE: MINÚSCULO - INCOMENSURÁVEL (Educ/Edusp, 2008)

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