5 de mai. de 2010







TEXTOS:



Dos dispositivos de poder ao agenciamento da resistência
Por Eduardo Pellejero




Foto: Francesca Woodman




Neste artigo o filosofo Eduardo Pellejero (que participa do X Simpósio Nietzsche / Deleuze: Natureza / Cultura) a partir de Deleuze e Foucault analisa os dispositivos de poder bem como os agenciamentos de Resistência e modos de Subjetivação. 





Em 1975, Foucault publicava Vigiar e punir, dando corpo a uma investigação que denotava um deslocamento dos seus interesses da constituição do saber à genealogia do poder. Não mudava apenas o objecto, mudavam, correlativamente, os conceitos. Entre outros, e sobretudo, o conceito de episteme deixa o lugar central que tinha ocupado até então para ser ocupado pelo conceito de dispositivo. E Foucault tem nisto, sobretudo, uma dívida com Deleuze1.
Nos anos seguintes, o conceito não deixa de ganhar importância. Foucault fala de dispositivo disciplinário, dispositivo carcerário, dispositivos de poder, dispositivos de saber, dispositivo de sexualidade, dispositivo de aliança, dispositivo de subjectividade, dispositivo de verdade, dispositivos de segurança, dispositivo estratégico de relações de poder, entre outros. Só em A vontade de saber, encontramos 70 ocorrências do conceito (mesmo se desaparecerá por completo nos seguintes volumes da História da sexualidade).
O conceito também ganha em precisão. Assim, Edgardo Castro assinala que o dispositivo implica: 1) uma rede de relações que se podem estabelecer entre o visível e o enunciável (discursos, instituições, arquitecturas, regulamentos, medidas administrativas, enunciados científicos, morais, filantrópicos); 2) um nexo não representativo entre esses elementos heterogéneos (por exemplo, o discurso pode aparecer como programa de uma instituição, como um elemento que pode justificar ou ocultar uma prática, ou funcionar como uma interpretação a posteriori dessa prática, etc); e 3) uma função estratégica (por exemplo, a reabsorção de uma massa de população flutuante que era excessiva para uma economia mercantilista, isto é, o hospital geral, como dispositivo de controlo-sujeição da loucura)2.
Deleuze, por sua parte, não desconhece a noção, mesmo se prefere falar de agenciamentos de desejo (antes que de dispositivos de poder). Não se trata apenas de uma diferença terminológica. Há uma característica fundamental dos agenciamentos que os colocam para além da sua determinação foucaultiana: qualquer agenciamento apresenta, por um lado, uma estratificação mais ou menos dura (digamos, os dispositivos de poder; Deleuze diz: “uma concreção de poder, de desejo e de territorialidade ou de reterritorialização, regida pela abstracção de uma lei transcendente”3), mas por outro lado compreende pontas de desterritorialização, linhas de fuga por onde se desarticula e se metamorfoseia (“onde se liberta o desejo de todas as suas concreções e abstracções”, diz Deleuze4). E adivinhamos aqui o problema que projectará Deleuze sobre o uso que faz Foucault da noção. Porque o problema de Deleuze não se esgota na determinação dos dispositivos nos quais nos encontramos comprometidos, senão que a partir dessa determinação lança a questão que atribui a Kafka: “Quando é que se pode dizer que um enunciado é novo?, para bem ou para mal; quando é que se pode dizer que um novo agenciamento se está a esboçar?, diabólico ou inocente, ou mesmo ambas as coisas ao mesmo tempo”5.
Esta diferença levará a uma inevitável confrontação. Em 1976, com efeito, Deleuze escreve a Foucault, a seguir à publicação de A vontade de saber6. O que é que diz Deleuze de Vigiar e punir? Em princípio, e de um modo geral, que representa uma “profunda novidade política” com relação ao modo em que concebe o poder. Em seguida, que a respeito do trabalho do próprio Foucault, implica uma superação da dualidade que existia entre formações discursivas e não-discursivas, ou, melhor, “uma razão das suas relações”. Deleuze considera, por outra parte, que A vontade de saber significa “um passo adiante” a respeito de Vigiar e punir. Primeiro, porque os dispositivos de poder passam a ser “constituintes” e não apenas normalizantes. Segundo, porque não se limitam a formar saberes, senão que são constitutivos de verdade (da verdade do poder). Por fim, porque já não se referem a “categorias” negativas – a loucura ou a delinquência como objectos de encerramento –, senão a uma categoria positiva: a sexualidade.
Isso no que diz respeito à avaliação positiva do trabalho de Foucault, porque, pelo que resta, a verdade é que tudo são críticas. Vou limitar-me às mais pertinentes para a questão dos dispositivos: 1) Em primeiro lugar, Deleuze não consegue reduzir os agenciamentos do desejo aos dispositivos do poder. Para Deleuze um agenciamento de desejo comporta dispositivos de poder, mas sempre entre outros componentes do agenciamento. Os dispositivos de poder surgem só aí onde se operam re-territorializações. Deleuze escreve: “Os dispositivos de poder seriam então uma componente dos agenciamentos. Mas os agenciamentos comportariam também pontas de desterritorialização. Brevemente, não seriam os dispositivos de poder que agenciariam, nem seriam constituintes, senão os agenciamentos de desejo que propagariam formações de poder seguindo uma das suas dimensões. O que me permitiria responder à questão, necessária para mim, desnecessária para Michel: como é que o poder pode ser desejado? A primeira diferença seria então que, para mim, o poder é uma afecção do desejo”7. 2) Em segundo lugar, Deleuze vê no deslocamento do princípio que define um campo social dado, das contradições às estratégias, um passo em frente; mas é uma idéia que não acaba por convencê-lo. Uma sociedade não se contradiz, mas também não se estrategiza: o primeiro é que foge, o social foge por todas as partes. Cito novamente Deleuze: “Ainda aí, eu reencontro o primado do desejo, uma vez que o desejo está precisamente nas linhas de fuga (...) Confunde-se com elas (...) As linhas de fuga, os movimentos de desterritorialização não me parecem ter equivalente em Michel, como determinações colectivas históricas. Para mim não há o problema de um estatuto dos fenómenos de resistência: uma vez que as linhas de fuga são as determinações primeiras (...) são linhas objectivas que atravessam uma sociedade (...) De onde o estatuto do intelectual e o problema político não serão teoricamente os mesmos para Michel e para mim”8.
O episódio perderá relevância, de qualquer modo, dez anos depois, quando Deleuze publica seu livro dedicado a Foucault, practicando uma reavaliação sistemática da sua obra. Quero dizer que temos então uma leitura incomensurável dos conceitos foucaultianos (incomensurável com a leitura de 77), que se estenderá através de entrevistas e referências circunstanciais até a década de 90. De 77 ficará apenas uma história: a história de uma crise. De uma crise de todas as ordens: política, vital, filosófica. É assim que Deleuze interpreta o longo silêncio que segue à A vontade de saber: Foucault teria tido a sensação de que se teria fechado nas relações de poder. Deleuze comenta: “O fracasso final do movimento das prisões, depois de 1970, já entristecera Foucault; outros acontecimentos posteriores, à escala mundial, aumentaram essa tristeza. Se o poder é constitutivo de verdade, como conceber um «poder da verdade» que já não seja verdade do poder, uma verdade que derive das linhas transversais de resistência e já não das linhas integrais de poder? Como «franquear a linha»?”9.
Nos setenta, havia problemas que se colocavam para Deleuze e não se colocavam para Foucault, e vice-versa. Nos oitenta, crise mediante, Foucault toma consciência de que os problemas não podem ser mais que os mesmos para ambos e que é no mesmo sentido que devem procurar uma solução: para além dos dispositivos de poder, tem que haver uma dimensão para a luta, para a criação, para a resistência. Em uma entrevista de 1986, Deleuze preenche essa distância: “Por muito que invoque os focos de resistência, de onde vêm tais focos? Necessitará muito tempo para encontrar uma solução, uma vez que, de facto, se trata de criá-la”10.
Qual é essa solução? São, diz Deleuze, os processos de subjectivação como dobra das relações de força dos dispositivos de poder. Trata-se da constituição de modos de existência, da invenção de possibilidades de vida, da criação de territórios existenciais, seguindo regras facultativas, capazes de resistir ao poder como de furtar-se ao saber, mesmo se o saber intenta penetrá-las e o poder de reapropriar-se delas. A luta por uma subjectividade moderna passaria para Foucault por uma resistência às formas actuais de sujeição, passaria por individuar-nos para além das exigências do poder, aquém também, da nossa determinação como indivíduos com uma identidade constituída e conhecida, decidida de uma vez por todas. Reconhecemos o tema do cuidado de si, o tema de uma estética da existência, que Foucault desenvolve a partir de O uso dos prazeres.
A resistência é primeira. É-o para Deleuze, e pode chegar a sê-lo para Foucault na medida em que a produção de subjectividade escapa aos poderes e aos saberes de um dispositivo para reinvestir-se nos de outro: a relação consigo mesmo – então – é uma das fontes de esses focos de resistência. O campo social deixou de estar composto apenas por formações isoladas e imutáveis: só as estratificações do saber e do poder lhe proporcionam alguma estabilidade, mas em si mesmo é instável, agitado, cambiante, como se dependesse de um “apriori paradoxal”, de uma “microagitação”11. Não há dispositivo ou agenciamento que não implique, ao lado dos pontos que conecta, no seu diagrama, digamos, pontos relativamente livres ou libertados, pontos de criatividade, de mutação, de resistência.
A tarefa é, então, alcançar as linhas de subjectivação que determinam a margem extrema de um dispositivo e esboçam a passagem de um dispositivo a outro: “faz falta chegar a dobrar a linha, para constituir uma zona vivível, onde poder alojar-se, tomar apoio, respirar – brevemente, pensar”12.
É neste sentido que Deleuze vai recusar violentamente as interpretações que vêem em Foucault um historiador. Para Deleuze, o que conta é a preocupação foucaultiana pela actualidade. Uma preocupação que nada tem a ver com um eventual retorno aos gregos, senão com as possibilidades que temos de constituir-nos como “si”, para além do saber e do poder, com os processos de subjectivação irredutíveis aos códigos morais dos que dispomos.
E esta é a principal consequência de uma filosofia dos dispositivos: uma mudança de orientação, que se desvia da filosofia do Eterno para aprender o novo. Não predizer, diz Deleuze, senão estar atento ao desconhecido que toca à porta13.


Para conferir as notas clique aqui 

Eduardo Pellejero é argentino. Doutorado em filosofia contemporânea pela Universidade de Lisboa, com uma tese sobre o pensamento de Gilles Deleuze. É professor de Estética na UFRN e desenvolve uma pesquisa no domínio da filosofia (política) da ficção. É autor de trabalha atualmente no campo da filosofia (política) da ficção. Autor de "A Postulação da Realidade: filosofia, literatura, política" (editora Vendaval, Lisboa, 2009)”




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